Associados vão a Amazônia realizar trabalho voluntário com aldeias indígenas

Associados vão a Amazônia realizar trabalho voluntário com aldeias indígenas

A 5 mil quilômetros de Piracicaba : tudo pela dentição
* Admilton J. Biscalquin

O fascínio pela região amazônica remonta os tempos da faculdade, em experiências vividas no Projeto Rondon da época. Sobrevoando aquela imensidão de floresta, às vezes nos esquecemos que além de um ecossistema extremamente complexo e delicado, abriga também povos indígenas e populações tradicionais com grande diversidade cultural. A importância da Amazônia para a humanidade não reside apenas no papel que desempenha para o equilíbrio ecológico mundial. Há milênios ela é o berço de inúmeros povos indígenas, embora ainda hoje os verdadeiros “donos das terras” continuem isolados e mal cuidados.

Foi por meio do convite que a diocese de São Gabriel da Cachoeira, alto rio Negro no Amazonas, fez aos salesianos de São Paulo, que formamos um grupo de dez missionários (eu, minha esposa Diva, nossas três filhas, dois professores, dois universitários e um padre) para trabalharmos voluntariamente na região por um mês. Os universitários e professores desenvolveram trabalhos pastorais junto à comunidade. Como dentistas, com recursos próprios, levamos gerador, compressor, refletor, equipo e materiais de uso odontológico, para poder atuar na região. Conseguimos também através da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde de São Gabriel) várias caixas de escovas e creme dental para serem distribuídas à população das aldeias.

Aproximadamente cinco mil quilômetros separam a cidade de São Paulo a São Gabriel da Cachoeira. Só é possível chegar lá partindo de Manaus, de avião por duas horas e meia ou de barco viajando quatro dias. São Gabriel é considerada a cidade mais indígena do Brasil, 90% da população é composta por índios ou descendentes, sendo o restante completado pela presença de nordestinos, paraenses e de outros estados. Lá vigora uma lei aprovada em 2002 que co-oficializa três línguas indígenas (Nheengatu, Tukano e Baniwa) como idioma oficial, além do português.

Nos últimos dois séculos, o contato e comércio entre os nativos e os “brancos” forçou a ida de muitos índios para as cidades. O fluxo do interior em direção à cidade se caracteriza pela busca de complementação do estudo escolar, trabalho remunerado, serviço militar e comércio com preços mais acessíveis que os praticados pelos barcos de comerciantes que se deslocam pelos rios.

Na região do alto e médio rio Negro, maior bacia de águas negras do mundo, no Amazonas, convivem 22 povos indígenas, formando uma população de 45 mil habitantes. Existem mais de 700 povoações indígenas espalhadas pelos rios, desde pequenos sítios habitados por apenas um casal e filhos até grandes povoados com mais de mil pessoas.

Os índios que ocupam as margens dos rios se organizam em “comunidades”, nome dado há décadas pelos missionários católicos, que são povoados que vieram substituir as antigas malocas que eram grandes casas que serviam de moradia para várias famílias. Compõem-se na maioria de um conjunto de casas em um pátio aberto, com paredes de casca de árvore com argila, ou tábuas, cobertas de palha ou zinco. Pode haver uma capela (católica ou protestante), uma escolinha e eventualmente um posto de saúde. Cada comunidade possui um capitão, sempre um homem, que tem o papel de orientar e reunir o grupo, “animando-o” para trabalhos comunitários e interlocutor preferencial com os brancos. Não se trata de um chefe, todo poderoso que dá ordens e aplica punições.

Nosso plano de atuação foi estabelecido junto com um membro da Funasa de São Gabriel que indicou as varias comunidades (aldeias) ao longo dos rios, onde poderíamos atender. Para isso o único meio de transporte é o barco, chamado voadeira.

Sempre bem recebidos e orientados pelo capitão da comunidade, nos instalávamos na palhoça e através da agente de saúde local organizavam-se os atendimentos. Por não existirem cadeiras no local usávamos as mesas para atendermos os pacientes. A princípio uma pequena fila de curiosos e corajosos, após algumas horas, o número de pacientes dobrava. Eram realizados em média 50 a 60 atendimentos, começando sempre pelas crianças onde o índice de cárie era bastante alto. Somente numa comunidade Yanomami, bem distante, é que observamos uma saúde bucal melhor.

Ao finalizar os atendimentos íamos à margem do rio para técnicas de escovação, nosso “escovódromo”, onde a participação deles era total. Após a escovação todos mergulhávamos no rio, de águas escuras mas limpas,  para refrescar do calor. Como forma de agradecimento era comum trazerem frutas da região como cupuaçu, tucumã, beribá, camu-camu e os sucos de pupunha, açaí, graviola e água de coco, uma delícia.

Quando a comunidade era próxima voltávamos à cidade, caso contrário, dormíamos em redes nas palhoças e continuávamos a atender no dia seguinte.
Embora existam vários projetos governamentais de atendimentos aos povos indígenas dos rios, ainda são poucos diante das necessidades deles.

O trabalho junto a uma cultura muito diferente da nossa proporciona uma grande satisfação em agir e um elevado respeito ao indígena e seus costumes. Muito embora até pouco tempo atrás prevalecesse o conceito dos tempos de colônia que consideravam os índios como povos inferiores, improdutivos a nação, e eternas crianças a serem tuteladas. Esforçavam-se para “integrá-los” à sociedade à custa da renúncia à sua raça, cultura, língua e valores, como se raça não fosse algo permanente, mas uma condição social provisória. Há também o outro extremo onde sociólogos e antropólogos agnósticos pretendiam conservar os índios imobilizados como objetos de estudo num museu e não como irmãos brasileiros.

Com o desenvolvimento da antropologia cultural é que se demonstrou que não existem povos inferiores, mas apenas diferentes. O crescimento da consciência de sua dignidade como seres humanos e da capacidade de se desenvolverem por si próprios resultaram na formação de associações indígenas de vários gêneros para a defesa de seus direitos e promoção de sua cultura, a FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) é uma delas.

Uma nova mentalidade surge na ajuda para tornar o indígena autor do próprio progresso e a ser capaz de assumir com responsabilidade postos de relevo no campo da educação, da saúde, da promoção humana e da cidadania. Um processo de inculturação seja entendido, expresso e vivido com os elementos próprios dessa cultura e se converta em princípio inspirador, normativo e unificador, capaz de transformar e aperfeiçoar sem deturpações o contexto indígena.

* o autor é cirurgião-dentista e associado da APCD-Piraicicaba