Preparo dos canais radiculares com uma só lima

Preparo dos canais radiculares com uma só lima

* por Patrick Baltieri (patrickbaltieri@gmail.com / www.patrickbaltieri.com.br) – Especialista em Endodontia pela FOP-UNICAMP e Mestrando em Endodontia pela SLMandic-Itapetininga

A adequada limpeza e modelagem do sistema de canais radiculares é fundamental para viabilizar o sucesso do tratamento endodôntico. Tradicionalmente, esse procedimento sempre foi realizado com limas manuais através de diferentes técnicas de preparo, propostas durante a evolução da endodontia. Independente da técnica preconizada, esse preparo quando efetuado com limas manuais é muito lento, pois utiliza-se um número muito grande de instrumentos. Além de demorado, o tratamento endodôntico com limas manuais pode provocar iatrogenias como desvios, perfurações e grandes desgastes radiculares, devido à alta rigidez desses instrumentos, que são produzidos em liga de aço-inoxidável.
A busca pela simplificação dessa etapa da endodontia e, consequentemente, do tratamento endodôntico, sempre foi alvo da indústria e dos pesquisadores, a fim de elevar sua qualidade. Diversas foram as tentativas de automatizar o procedimento endodôntico, porém, com pouco ou nenhum aumento de sua eficiência. Entretanto, na metade da década de 1990 esse quadro, há muito tempo estagnado, começou a mudar, pois foram lançados no mercado odontológico os primeiros instrumentos manuais e rotatórios fabricados a partir da liga de níquel-titânio (Ni-Ti). A introdução dos instrumentos de Ni-Ti mudou drasticamente a maneira como o preparo era realizado, possibilitando que canais radiculares com alto grau de complexidade pudessem ser tratados com maior eficiência e menor risco de iatrogenias.

Quais os fatores que viabilizaram o uso dos instrumentos rotatórios para o preparo dos canais radiculares?
Patrick Baltieri
: A mecanização desta etapa do tratamento endodôntico só foi possível devido ao desenvolvimento dos instrumentos de Ni-Ti. Esta liga possibilitou a fabricação de limas com alta flexibilidade, principal característica das limas rotatórias. Além do uso de uma nova liga, outras características foram alteradas, tais como design da secção transversal (arestas de corte em “U”), variação dos diâmetros da ponta ativa e da conicidade, deixando de lado a padronização ISO. Com essa variação de diâmetro e conicidade foram montadas sequências de instrumentos, denominadas de “Sistemas Rotatórios”, em que cada lima da sequência trabalha em um segmento do canal radicular, ou seja, o preparo dos canais passou a ser segmentado. Para usar essas limas nos canais, foram desenvolvidos motores com controle inteligente de torque e velocidade, os quais fornecem o torque ideal para cada lima do sistema, parando de girar e acionando rotação reversa imediatamente antes da lima atingir o torque em que ela fraturaria. Desta forma, o trabalho com estes instrumentos se tornou muito mais seguro.

E quais as vantagens deste tipo de instrumento? Existem desvantagens?
As principais vantagens são a economia de tempo e qualidade do preparo dos canais, que se torna um procedimento relativamente rápido, eficiente e muito seguro, minimizando a ocorrência de iatrogenias. Portanto, viabilizou-se o tratamento endodôntico em sessão única na grande maioria dos tratamentos endodônticos. Outra vantagem no preparo segmentado do canal radicular com instrumentos rotatórios é o pequeno desgaste dentinário, o que contribui para minimizar o risco de fraturas radiculares.
Talvez as desvantagens das limas rotatórias estejam relacionadas com a possibilidade de fratura do instrumento durante o tratamento endodôntico e a necessidade de se empregar uma série de instrumentos, normalmente seis a oito limas, para se realizar a completa limpeza e modelagem do sistema de canais radiculares.

O que são e quando surgiram os instrumentos de Ni-Ti reciprocantes?
Os instrumentos reciprocantes são limas de Ni-Ti acionadas a motor que são utilizadas com uma cinemática totalmente diferente dos rotatórios contínuos. Elas realizam um movimento de rotação alternada, sendo que o avanço no sentido horário é maior que no sentido anti-horário, o que evita o travamento da lima no interior do canal. Essa cinemática possibilita o avanço no canal radicular com apenas um instrumento, o que simplifica muito sua modelagem, que é realizada com muita segurança, rapidez e eficiência.
A técnica reciprocante de preparo endodôntico foi proposta em 2008, pelo pesquisador canadense Yared Ghassan. Inicialmente, ele propôs que fosse feito apenas o cateterismo do canal radicular até o comprimento de trabalho com uma lima manual e, posteriormente, usado um instrumento de Ni-Ti (Protaper-F2) em movimento reciprocante até que todo o canal estivesse modelado. Atualmente, existem no mercado odontológico três instrumentos desenvolvidos exclusivamente para serem usados na cinemática reciprocante:  RECIPROC (VDW-Alemanha); WAVEONE (DENTSPLY-EUA); DUO HÍBRIDO (EASY-Brasil). Nesses três sistemas o número de limas diminuiu drasticamente, se empregando, na maioria dos casos, apenas um instrumento de Ni-Ti para se realizar todo o preparo do canal radicular. Consequentemente, a redução no tempo de trabalho é muito grande, o que pode aumentar a produtividade do endodontista, realizando tratamentos de alto padrão de qualidade em um curto período de tempo (Figura).

Quais são as tendências para o futuro da instrumentação dos canais radiculares durante a terapia endodôntica?
A ideia do uso de instrumentos de Ni-Ti em movimento reciprocante é muito promissora, visto que os resultados clínicos são muito interessantes e as pesquisas científicas vem apresentando resultados muito animadores. A tendência é que ocorra uma grande evolução destes instrumentos nos próximos anos, de forma que se consiga realizar todo o preparo do canal radicular com apenas uma única lima de Ni-Ti, com muita segurança e eficiência. Por outro lado, na tentativa de otimizar a limpeza, já existe no mercado endodôntico um instrumento que se ajusta à anatomia interna do canal radicular, chamado SAF (Self Adjust File – Lima Auto Ajustável), que parece limpar regiões do canal radicular que dificilmente seriam tocadas pelos instrumentos rotatórios contínuos ou reciprocantes.

Qual a importância da qualificação do profissional e treinamento para o emprego desta tecnologia?
Não são todos os canais radiculares que podem ser preparados exclusivamente com instrumentos rotatórios, devido à grande variabilidade anatômica e ao grau de complexidade técnica do tratamento. Desta forma, a aplicação clínica destes sistemas requer profundo conhecimento da anatomia radicular e o respeito aos princípios de uso no momento da seleção do sistema a ser empregado. Todo o canal radicular a ser tratado necessita de criteriosa avaliação em relação ao comprimento, amplitude, achatamento e curvatura, a fim de se planejar a abordagem endodôntica em função do grau de complexidade técnica. Para isto, o profissional que se dedica à realização da Endodontia deve estar em constante atualização e treinamento clínico e, principalmente, pré-clínico em dentes extraídos, a fim de entrar em contato com a maior quantidade possível de variedades morfológicas, desenvolvendo a memória anatómica, que será a base para o sucesso de sua abordagem clínica.

A.    Dente 46 com necrose pulpar e lesão periapical crônica, apresentando canais constritos e discreta curvatura;
B.    Início do preparo do canal radicular com o instrumento RECIPROC (VDW);
C.    Notar a grande quantidade de restos pulpares e raspas dentinárias nas ponta ativa do instrumento reciprocamente, imediatamente após o término da limpeza e modelagem do canal radicular;
D.    Endodontia finalizada. Nesta radiografia é possível visualizar como o desgaste intracanal é conservador e centralizado. Vale ressaltar a importância da imediata realização do procedimento pré-restaurador (núcleo de preenchimento em resina composta).